terça-feira, 24 de março de 2009

Sangue, células sanguíneas e coagulação

Um ser humano adulto possui cerca de 5 litros de sangue. Este é constituído por plasma e células sanguíneas. O plasma é o componente líquido do sangue, e contém (além de água) proteínas, nutrientes, hormonas, sais e resíduos do metabolismo. Tem cor amarela, devido à presença de bilirrubina (proveniente da degradação dos hemos). As proteínas plasmáticas são sintetizadas pelo fígado, e desempenham uma grande variedade de papéis: transporte de moléculas importantes, manutenção da pressão osmótica e coagulação. As células sanguíneas circulam suspensas no plasma e podem ser:

Eritrócitos (ou glóbulos vermelhos). São as mais abundantes células sanguíneas e contêm hemoglobina. São desprovidos de núcleo e organelos. São produzidos na medula óssea e degradados (após cerca de 120 dias) no baço e fígado. Para a sua formação é necessário ferro, ácido fólico e vitamina B12. A sua síntese é estimulada pela hormona eritropoietina, secretada pelos rins em resposta à diminuição do fornecimento de O2.

Plaquetas (ou trombócitos). Fragmentos celulares de megacariócitos (grandes células poliplóides presentes na medula óssea em contacto com os vasos sanguíneos). São essenciais para a coagulação sanguínea.

Leucócitos (ou glóbulos brancos). Responsáveis pela resposta imunitária. Dividem-se em:

  • Monócitos (que após deixarem a circulação sanguínea se diferenciam em células fagocíticas especializadas: os macrófagos);
  • Linfócitos;
  • Granulócitos polimorfonucleados
  • Basófilos, que secretam histamina, um mediador importante da resposta inflamatória;
  • Eosinófilos, que atacam parasitas multicelulares e estão envolvidos nas respostas alérgicas;
  • Neutrófilos, que realizam a fagocitose.

As células sanguíneas são produzidas na medula óssea a partir de células estaminais adultas que se diferenciam progressivamente sob controlo de diversos factores hematopoiéticos.

Coagulação

No caso de lesões de veias, a perda de sangue é relativamente lenta (devido à baixa pressão sanguínea) e pode frequentemente ser travada se a região afectada for elevada a um nível superior ao do coração. Se a hemorragia se der em direcção aos tecidos, a acumulação de sangue (hematoma) pode até elevar a pressão do fluido intersticial para os níveis de pressão sanguínea observados na veia, eliminando a saída de sangue.

As hemorragias provocadas pelo rompimento de artérias de médio ou largo calibre não são geralmente controláveis pelo organismo. No entanto, os mecanismos fisiológicos de coagulação (ou hemostase) são bastante eficazes na resposta a lesões de vasos pequenos, que são as mais comuns na vida quotidiana. A resposta imediata à lesão do vaso é a sua constrição, o que provoca a diminuição do fluxo sanguíneo na área afectada. Esta constrição pressiona as superfícies endoteliais do vaso uma contra a outra, induzindo um contacto que bloqueia o vaso. Porém, o fecho permanente da ruptura só pode ser realizado por estes mecanismos nos capilares mais finos, e a paragem da hemorragia depende de outros dois processos, que envolvem a actividade das plaquetas:

A formação de um rolhão plaquetário

A ruptura do vaso expõe o tecido conjuntivo subjacente. As plaquetas aderem ao colagénio presente neste tecido através de uma proteína plasmática secretada pelas células endoteliais e pelas plaquetas (o factor de von Willebrand). A ligação das plaquetas ao colagénio indu-las a libertar as substâncias presentes nas suas vesículas secretoras. Estas substâncias (serotonina, ADP, etc.) actuam localmente sobre as próprias plaquetas, provocando alterações no seu metabolismo, forma e proteínas superficiais, num processo denominado activação das plaquetas. Algumas destas alterações fazem com que novas plaquetas adiram às iniciais, provocando a agregação das plaquetas (através de moléculas de fibrinogénio) e a formação do rolhão plaquetário. A adesão das plaquetas indu-las a secretar tromboxano A2, que estimula agregação adicional de plaquetas. O rolhão plaquetário pode selar pequenas quebras nos vasos. A sua expansão descontrolada é impedida pelo facto das células endoteliais sãs que rodeiam a lesão secretarem continuamente prostaciclina, que inibe a agregação plaquetária. O rolhão só se forma portanto onde existir lesão do vaso.

Coagulação.

A lesão do vaso provoca a libertação (pelas células circundantes) da Tromboplastina (também chamada factor tecidular, ou factor III). Esta proteína liga-se então a uma proteína plasmática, o Factor VII, activando-o. Este novo complexo tromboplastina-factor VIIa cataliza a activação dos factores X e IX. O factor Xa, na presença do factor Va, cataliza a transformação de protrombina em Trombina, que quebra e activa o factor XIII e transforma o fibrinogénio em Fibrina. O factor XIIIa cria então ligações covalentes entre as moléculas de fibrina, que precipita e forma o coágulo, que bloqueia a lesão do vaso.

Esta via de coagulação é chamada via extrínseca, porque necessita de um factor (a tromboplastina) que não está originalmente presente no plasma.

A coagulação do sangue observada quando se recolhe sangue para um tubo (e por isso na ausência de tromboplastina) explica-se pela actuação de uma segunda via (a via intrínseca). Inicialmente, o factor XII é activado por contacto com colagéneo, ou vidro. Este factor activa o

  • Factor XI, que activa o
  • Factor IX, que na presença de factor VIIIa activa o
  • Factor X. A partir deste ponto o mecanismo é igual ao observado na via extrínseca.

Em condições fisiológicas, a coagulação é iniciada pela via extrínseca. No entanto, o plasma ontém um inibidor da via do factor tecidular, que inibe a activação do factor X pelo complexo romboplastina-factor VIIa. A formação de trombina pela via extrínseca é portanto pequena. A coagulação é finalizada então pela via intrínseca: a pequena quantidade de trombina produzida pela via extrínseca activa os factores V, VIII e XI, que permitem o funcionamento da via intrínseca. Exceptuando os dois primeiros passos da via intrínseca, toda a sequência de coagulação requer a presença de Ca2+.

Além da presença do inibidor da via do factor tecidular, existem outras formas de controlo da coagulação. A trombomodulina, na presença de trombina, activa uma proteína (proteína C), que inactiva os factores VIIIa e Va. A trombina pode também ser inactivada pela acção conjunta da antitrombina III e da heparina.

Eventualmente, o coágulo deve ser dissolvido. Isto é realizado pelo sistema fibrinolítico. Tal como as vias de coagulação, este é constituído por uma grande sequência de proteínas que se activam sequencialmente, obtendo-se no fim a activação do plasminogénio em plasmina. A plasmina digere a fibrina, provocando a dissolução do coágulo.

Nota: a letra a em subscrito denota a forma activada dos factores de coagulação plasmáticos

Existem várias estratégias para terapia anticoagulante:

  • A aspirina inibe a ciclooxigenase (a enzima que sintetiza o precursor do tromboxano A2), inibindo portanto a agregação plaquetária.
  • Anticoagulantes orais, que interferem com a actividade da vitamina K, que é necessária para a síntese de vários factores de coagulação (protrombina, VII, IX e X)
  • Administração de heparina
  • Bloqueadores do fibrinogénio, que interferem com a agregação das plaquetas.
  • Administração de activadores do plasminogénio.

Resposta imunitária
A lesão dos tecidos por organismos patogénicos provoca a libertação de mensageiros químicos que provocam a vasodilatação em torno da região afectada, assim como o aumento da permeabilidade proteica dos capilares e vénulas nessa região. Isto causa difusão de proteínas plasmáticas e plasma para essa região (edema). À medida que o processo inflamatório avança, os neutrófilos circulantes (atraídos por moléculas quimiotácticas, p. ex. os leucotrienos) aderem às élulas endoteliais da região afectada. Os neutrófilos acumulam-se portanto em torno da região afectada, em vez de serem arrastados pela corrente sanguínea. Seguidamente os neutrófilos deslocam-se através dos interstícios existentes entre as células endoteliais e migram para o fluido intersticial -diapedese. Também os monócitos migram para o fluido intersticial e uma vez lá chegados transformam-se em macrófagos. Começa então o processo de fagocitose do patogéneo, iniciado pelo contacto da célula fagocítica (neutrófilo ou macrófago) com os lípidos e carboidratos das paredes celulares bacterianas. Este contacto é favorecido por substâncias secretadas pelo organismo, e denominadas colectivamente por opsoninas. O fagócito envolve a célula invasora, e após endocitose desta ataca-a com os seus lisossomas, que a degradam através das suas enzimas hidrolíticas. Outras enzimas envolvidas no processo libertam substâncias oxidantes extremamente activas de elevada toxicidade (NO, peróxido de hidrogénio, hipoclorito).

Um conjunto de proteínas plasmáticas denominado complemento (e que se activam mutuamente numa sequência análoga à dos factores de coagulação) é também capaz de levar a cabo a destruição extracelular de patogéneos. O complemento é activado em resposta à infecção, e leva à formação de um complexo de ataque membranar (MAC), capaz de se integrar na membrana do patogéneo e de formar um canal por onde água e electrólitos entram, provocando a sua lise. Alguns dos componentes do complemento podem também actuar como opsoninas.

Os mecanismos descritos acima são não-específicos. A imunidade específica (responsável por exemplo pela imunização) depende da actuação de moléculas (as imunoglobulinas) capazes de reconhecer marcadores moleculares específicos da célula invasora (os antigénios). As imunoglobulinas são produzidas pelos linfócitos e contêm zonas constantes e extremidades variáveis (e hipervariáveis) - responsáveis pela ligação selectiva aos antigénios. O processo da sua síntese envolve o rearranjo aleatório dos genes das imunoglobulinas em cada linfócito. Cada linfócito produz por isso uma só imunoglobulina, diferente da dos outros linfócitos. Quando um linfócito reconhece um antigénio, é activado e entra em divisão acelerada. Cada célula filha será específica para o mesmo antigénio reconhecido pela suma "célula-mãe".

Após activação, alguns linfócitos iniciam a resposta imunológica, e outros ficam de reserva como memória imunológica. Existem três tipos de linfócitos:

  • Linfócitos B - amadurecem na medula óssea. Após activação, diferenciam-se em plasmócitos, que secretam imunoglobulinas para corrente sanguínea. Estas imunoglobulinas solúveis denominam-se anticorpos.
  • Linfócitos T - são sintetizados na medula óssea, mas amadurecem no timo. Podem ser de dois tipos:

CD8 (ou células T citotóxicas) - Após activação, ligam-se ao seu alvo através das suas imunoglobulinas e secretam substâncias letais. As respostas mediadas por estes linfócitos são dirigidas contra as células do próprio organismo que se tenham tornado cancerosas ou infectadas por vírus (ou microrganismos que, tal como os vírus, se tenham incorporado nas células).

CD4 (ou helper T cells) - Após activação secretam citoquinas, que são essenciais para o funcionamento adequado dos linfócitos B, células NK e linfócitos T citotóxicos.

  • Natural killer (NK) cells - tal como os linfócitos CD8, atacam células cancerosas ou infectadas por vírus. No entanto, não reconhecem especificamente os seus alvos, por não possuírem imunoglobulinas. Reconhecem as zonas constantes dos anticorpos solúveis que se ligaram à célula alvo. Por isso necessitam da intervenção dos plasmócitos, que secretam esses anticorpos.

Além das funções já mencionadas, os anticorpos podem também desencadear outro tipo de mecanismos: podem activar o sistema de complemento, provocando a lise específica do patogéneo, podem complexar toxinas (formando eventualmente "redes" anticorpo-toxina-anticorpo-toxina etc.) para permitir a sua fagocitose e podem actuar como opsoninas.

Grupos sanguíneos

A superfície dos eritrócitos possui elevado número de glicoproteínas, agrupadas em famílias que se denominam "grupos sanguíneos". Os mais importantes são o sistema ABO e o sistema Rhesus.

Sistema ABO - Inclui o carboidrato H e duas variantes parecidas com esta, que se chamam A e B. Um indivíduo pode ser por isso A, B, AB ou O (se só tiver o carboidrato H). Cada indivíduo possui naturalmente anticorpos específicos para os carboidratos que não possui. Assim, um indivíduo A possui anticorpos anti-B, um indivíduo O possui anticorpos anti-B e anticorpos anti-A, e um indivíduo AB não possui nenhum dos anticorpos. (Não existem anticorpos anti-H, provavelmente porque o carboidrato H é muito semelhante quer ao A quer ao B, e um anticorpo anti-H reagiria com os antigénios A e B). Numa transfusão, os anticorpos do dador diluem-se rapidamente na corrente sanguínea do receptor, e os efeitos de compatibilidade (ou incompatibilidade) manifestam-se devido à interacção dos anticorpos do receptor e dos antigénios presentes no sangue do doador. Se o receptor possui anticorpos específicos para os eritrócitos do doador, estes aglutinarão (unidos entre si pelos anticorpos do receptor) e poderão formar um trombo.

Sistema Rhesus - caracterizado pela presença ou ausência do antigénio D. Ao contrário do sistema ABO, um indivíduo sem o antigénio D não possui anticorpos anti-D se nunca tiver sido exposto ao antigénio. Apenas os produz após contacto. Isto torna-se importante nas interacções mãe-feto. Durante o nascimento de um bebé, a ruptura dos vasos sanguíneos da placenta provoca o contacto entre os sangues da mãe e do bebé. Se a mãe for Rh- e o bebé Rh+, isto significa uma exposição da mãe ao antigénio D, e ela começará portanto a sintetizar anticorpos anti-D. Numa gravidez seguinte, estes anticorpos podem atravessar a placenta e provocar a aglomeração e destruição dos eritrócitos de um bebé Rh+. Isto pode provocar anemia grave do bebé, e mesmo a morte. Actualmente, impede-se este fenómeno administrando à mãe Rh-anticorpos anti-D logo que nasce o bebé Rh+. Estes anticorpos ligam-se aos antigénios D dos eritrócitos do bebé que estejam em circulação no sangue da mãe, impedindo que induzam a síntese de anticorpos por parte da mãe. O sistema ABO não provoca este tipo de problemas porque os anticorpos produzidos são do tipo IgM, demasiado grande para atravessar a placenta.

Pesticidas




Pesticidas, ao ataque!
Com certeza que já todos ouvimos falar de pesticidas, e de como eles são permanentemente usados na produção de alimentos, destruindo todas as pestes que interfiram com a sua qualidade. Isto para não falar no que dizem sobre os efeitos nefastos que têm para a nossa saúde, sobre o facto de causarem cancro, intoxicações, ataques de parvoíce e insucesso escolar.

Pois este texto pretende dar uma perspectiva realista da história e evolução dos pesticidas, e qual o seu uso no mundo actual, à parte de todas e quaisquer ideias generalizadas do senso comum.


Mas o que são pesticidas??
São produtos, fabricados em laboratório ou de origem natural, usados para destruir pestes. Entende-se por "peste" qualquer animal, planta ou microrganismo que prolifera e vive em ambientes onde não é desejado pelo Homem. Portanto o termo de pesticida designa isso mesmo: uma "arma" contra uma peste.
Existem vários tipos de pesticidas e, consequentemente, várias maneiras de os classificar e agrupar. Mas a forma mais fácil de o fazer é separá-los consoante o tipo de organismo que atacam.

Tabela 1 – Grupos de Pesticidas e alvos de acção

De todos estes os mais famosos são os insecticidas (que todos temos em casa para matar as moscas) e os herbicidas (usados nos jardins, por exemplo). É claro que estes dois tipos de pesticidas não se restringem ao nosso uso doméstico. Os insecticidas são usados em todo o mundo em grandes campos agrícolas, para que estes não sejam afectados por pragas de mosquitos e outros insectos!


Breve história dos pesticidas
A história dos pesticidas começa bem para trás... na antiguidade! Mesmo nos anos antes de Cristo os povos da China, da Grécia e da Suméria já se tinham apercebido do efeito de alguns sais inorgânicos no combate aos insectos nas suas colheitas. Mais tarde aperceberam-se também que certas plantas funcionavam perfeitamente como um veneno potente para a maioria dos vertebrados e invertebrados, embora não tivessem a menor ideia de quais as substâncias activas que elas continham. Uma dessas substâncias era... a nicotina! Coincidência de nomes? Não, esta é a mesma nicotina que é extraída da planta Nicotina tabacum e usada como a substância activa do tabaco (dá para perceber porque é que fumar prejudica tanto a saúde, não?).
O uso "oficial" de pesticidas começou no final do século XIX, com a comercialização de alguns sais inorgânicos no combate às espécies de escaravelhos que nessa altura afectavam as plantações de batatas. No entanto a maioria destes sais eram tão tóxicos para as pestes como para o Homem. E por isso acabaram por ser abandonados uns anos depois, sendo substituídos por compostos orgânicos.
Mas o que é isso do orgânico e inorgânico?
Um composto é inorgânico se não tiver carbono na sua constituição. E o facto de se chamar orgânico a um composto não quer dizer que seja de origem natural. De facto existem inúmeros compostos orgânicos que são sintetizados em laboratório, e por isso se chamam orgânicos sintéticos. Assim, existem inúmeros compostos orgânicos, tanto de origem natural como sintéticos. Seguem-se alguns exemplos:

O Verde de Paris

O Verde de Paris é um dos exemplos mais emblemáticos de um pesticida sintético inorgânico, e tem uma história bastante peculiar. Verde de Paris é o nome trivial para um composto descoberto em 1808, designado por Acetoarsenito de Cobre, cuja fórmula química corresponde a Cu(C2H3O2)23Cu(AsO2)2. A história engraçada deste composto é que ele começou por ser comercializado em 1814, não como pesticida mas sim como um mero pigmento para tintas, devido à cor verde intensa que apresentava. Só após se atribuir a culpa ao Verde de Paris pelos envenenamentos de algumas pessoas que pintavam quadros é que o composto foi completamente banido das tintas. Este veneno potente está inserido em inúmeros quadros pintados durante o século XIX!

Apenas em 1867 o Verde de Paris foi introduzido no combate a pestes, sendo o principal insecticida para combater o escaravelho da batata. Em 1900 era usado em tão larga escala que levou o governo dos Estados Unidos da América a estabelecer a primeira legislação no país sobre o uso de insecticidas.
O composto acabou por ser banido uns anos depois, devido sua extrema toxicidade para os mamíferos.

O DDT – um perigo "latente"
Como seguimento aos sais inorgânicos, que se mostravam eficientes mas demasiado tóxicos, surge em 1941 o DDT. Este insecticida organoclorado (orgânico que contém cloro), também conhecido como Diclorodifeniltricloroetano, pode ser considerado o pesticida de maior importância histórica, devido ao seu impacto no ambiente, agricultura e saúde humana. De facto o DDT não foi desenvolvido no século XX. A sua origem remonta a 1874 quando o bioquímico alemão Ohtmar Zeidler o sintetizou pela primeira vez. Mas não tendo encontrado nenhum uso para o seu composto, este permaneceu na gaveta durante mais de 60 anos, até Paul Hermann Muller tropeçar nele em 1939.
Este composto, surpreendentemente, demonstrava ser eficaz contra uma vasta gama de insectos, o que levou a uma rápida comercialização e a um uso vastíssimo, abrangendo na década de 60 a aplicação para 334 variedades diferentes de produtos agrícolas, só nos Estados Unidos. Desta forma o DDT foi rapidamente apelidado como o pesticida "salva-vidas" perfeito e eficiente, que aparentemente não era prejudicial para a saúde pública.

Foram inúmeros os programas de erradicação da malária na maioria dos países desenvolvidos, através do uso do DDT.

A malária é uma doença mortal, ainda hoje muito presente nos países em desenvolvimento. Milhares de pessoas continuam a morrer todos os anos com malária, e a doença é facilmente transmitida através de uma espécie de mosquitos que a transportam. É provavelmente a segunda maior preocupação da Organização Mundial de Saúde, a seguir à SIDA. A relação entre a erradicação da malária e o uso de DDT está precisamente nos mosquitos transportadores. O DDT era muitas vezes pulverizado directamente, quase como se fosse água, sobre colheitas, casas, ruas, pessoas, etc., por forma a atacar os mosquitos transportadores da doença.
O reverso da medalha
O DDT não é um caso de sucesso, nem muito menos um "salva-vidas" perfeito. É sim um caso de perigo latente.

Anos mais tarde, já no fim da década de 60, começaram a surgir os primeiros manifestos contra o uso de DDT, baseados em alguns estudos por métodos analíticos.

Afinal qual o problema do uso deste pesticida tão eficiente e eficaz? O que realmente sucede é que o DDT é um composto muito estável, demasiado estável. A estabilidade é uma mais-valia na altura da pulverização e ataque à peste, mas uma desvantagem quando o composto persiste no ambiente e nos animais durante anos! E aí está o grande problema, o pormenor que faltou ser pensado na altura em que começou o seu uso. O DDT não é um composto hidrossolúvel, ou seja, não se dissolve em água. Ao contrário disso ele é bastante lipossolúvel, ou seja, dissolve-se facilmente em gorduras. Quando ele é pulverizado nos alimentos, para que estes não sejam atacados por pestes, para além de não se degradar, não vai sair com uma lavagem normal, visto não se dissolver. Assim o DDT vai persistir nos alimentos até chegar à boca dos animais, ou mesmo do próprio Homem, que deles se alimentam.

Dentro do nosso corpo o DDT também não é solúvel em água o que significa que não sai pelos métodos de excreção comuns, como a urina. Ao invés desse acontecimento, ele dissolve-se e acumula-se na gordura animal, demorando anos até ser transformado nos seus metabolitos e excretado! Os estudos analíticos indicam que são precisos 8 anos até que a concentração de DDT presente no nosso corpo se reduza a apenas metade!

Estes dados alarmantes levaram os cientistas a estudar a fundo os efeitos que a presença de DDT pode ter num organismo animal. Sabe-se neste momento que o DDT é extremamente tóxico, não a curto prazo mas sim a longo prazo, sendo responsável por infertilidade, cancro do fígado e problemas hepáticos, defeitos congénitos, etc.

E o problema não morre aqui. Existe também um sério problema de bioacumulação, ao longo da cadeia alimentar...

Bioacumulação?!?

Imaginemos que um campo de erva tinha sido tratado com DDT. Essa erva servirá como pasto para um animal de grande porte como uma vaca. Ora se a vaca se alimentar todos os dias dessa erva, a concentração de DDT na vaca vai começar a aumentar, ainda mais do que já se encontrava na erva. E se essa vaca entrar na nossa cadeia alimentar a concentração de DDT no nosso corpo será ainda maior! É este o problema designado por bioacumulação o qual está exemplificado na figura abaixo.

Os problemas ainda não acabam aqui...

A degradação do DDT dentro dos organismos animais dá normalmente origem a uma série de metabolitos, eles próprios também tóxicos! Os dois metabolitos mais problemáticos são o DDE e o famoso Clorofórmio (CCl4). O DDE, embora não tão tóxico como o DDT, tem propriedades que o tornam solúvel em leite. E um dos casos mais preocupantes, mesmo após se banir o uso de DDT em quase todo o mundo, foi a presença de DDE no leite materno dos humanos! Para os recém nascidos que dele se alimentam, este leite será claramente tóxico!

O caso do Clorofórmio é um pouco diferente. Através de um processo químico específico, o clorofórmio resultante da degradação do DDT pode, por sua vez, degradar-se e originar Fosgénio, uma substância particularmente electrófila com capacidade de provocar grandes alterações no DNA, o nosso material genético. O que originam estas alterações? - Cancro. À conta de todos estes estudos efectuados sobre o DDT, o seu uso foi banido em quase todos os países do mundo.

Em estudos efectuados, calcula-se que a quantidade de DDT que foi utilizada nos Estados Unidos é da ordem dos 1.000.000.000 kg!!


O pós-DDT

A introdução do DDT foi tão rápida como a sua tentava posterior de o banir. Estamos ainda nos anos 50 e os primeiros casos problemáticos com o DDT começavam a prever o seu futuro. Nessa mesma altura outros cientistas tentavam desenvolver outro tipo de pesticidas, desta vez com a preocupação acrescida de que os compostos não poderiam ter grandes impactos ambientais nem de saúde pública.
Assim um composto com as propriedades de organofosforado (feitos à base de fósforo) surgiu em 1950, desenvolvido pela American Cyanamid Company, designado por Malathion, conhecido por alguns como Malatião e por outros como o "mata-sogras". Este composto é ainda hoje usado e comercializado como insecticida.
Os estudos de um outro cientista, Robert Metcalf, fazem surgir uma nova química, a química dos carbamatos, donde nasce o Propoxur, comercialmente designado como Baygon®. É certo que ainda hoje este produto é muito usado a nível doméstico.


Resistência a pesticidas
Os primeiros casos de resistência a pesticidas foram revelados em 1914. Em 1946 já se conheciam onze espécies resistentes a pesticidas, e o número foi aumentando sucessivamente ao longo dos anos, chegando às 447 em 1984.

Mas o que acontece exactamente quando se diz que a espécie é resistente?

O mundo está cheio de mutações espontâneas, organismos que nascem com características diferentes da espécie dominante, resultado de alterações aleatórias e espontâneas que ocorrem nos nossos genes. Normalmente essas mudanças são inviáveis, ou seja, os organismos desenvolvem-se com características que ou nem lhes permitem nascer, ou não lhes permitem sobreviver.
Mas existem casos de mutações bem sucedidas no mundo. E em especial nos insectos, que têm uma vida muito curta e se reproduzem muito depressa, essas mutações aparecem com facilidade.
Se um insecto "aprender" a defender-se de um pesticida, ou seja, se sofrer uma mutação que permita que não seja afectado por esse pesticida, então esse vai ser o único sobrevivente quando aplicarmos o pesticida.
E como esse organismo mutado sobrevive, dá origem a outros organismos mutados que também sobrevivem. E enquanto estivermos a aplicar o pesticida estaremos apenas a eliminar a espécie selvagem (que não sofreu mutação) e a dar ainda mais espaço aos que sobrevivem para se desenvolverem!
O resultado é óbvio: a uma dada altura a espécie dominante é a espécie resistente, e, mesmo aplicando o pesticida, o resultado será nulo.

Este não é de todo um problema estagnado mas sim um problema crescente.

Existem pesticidas que simplesmente já não funcionam em espécie alguma, e que por isso foram retirados do mercado e substituídos por outros.
Embora existam técnicas que permitem reduzir a velocidade com que as espécies se tornam resistentes, não há forma de parar o problema por completo. A solução passa por desenvolver cada vez mais novos tipos de pesticidas cujo alvo químico de ataque seja diferente dos anteriores.

No mundo actual

Nos dias de hoje a polémica dos pesticidas continua. Persiste a preocupação de desenvolver novos compostos para controlar as espécies que a cada dia se tornam resistentes aos produtos aplicados. Persiste o esforço de um maior controlo, não só nas pestes mas também nos pesticidas usados. E persiste acima de tudo a preocupação dos efeitos dos pesticidas no Homem.
Actualmente existem inúmeras leis, protocolos e instituições que têm como objectivo estabelecer regras no uso dos pesticidas e prever os seus resultados antes da sua aplicação. Nos EUA foi criado o programa IPM – Integrated Pest Management – com o intuito de recriar o impacto de pesticidas num pequeno ecossistema, para que seja possível prever um efeito antes da aplicação do pesticida.
O uso de DDT encontra-se proibido para fins agrícolas. No entanto, para 25 países em desenvolvimento, foi permitido o uso de DDT, por ser a forma de defesa mais barata e acessível contra mosquitos transportadores de malária.

E agora a grande pergunta: será mesmo necessário usar pesticidas?

Para uma população terrestre de cerca de 6.000.000.000 de habitantes, a única forma de garantir a sua sustentabilidade é através do controlo da agricultura. O Homem como espécie dominante existe em quantidade muito superior à imposta pelo equilíbrio da Natureza. Portanto a resposta é: sim.
Os pesticidas são necessários enquanto o Homem quiser controlar o mundo, não só consumindo todos os recursos que nele encontra como gerindo-os da melhor forma. Porque no fundo é uma questão de luta contra a Natureza, não só pela sobrevivência mas também pelo contínuo crescimento e desenvolvimento da espécie Humana.

Nota:
Este artigo foi elaborado a partir de um trabalho sobre Pesticidas e Herbicidas, para a disciplina de História e Filosofia das Ciências, no IST. Agradeço por isso a contribuição do meu colega de grupo, Nuno Ramos Teodoro.

Para saber mais:
Pesticides Usage in USA, University of Georgia, 2000, http://www.ces.uga.edu/pubs/PDF/B1121.pdf

Report of the Standing Committee on Environment and Sustainable Development, 2000
http://www.parl.gc.ca/InfoComDoc/36/2/ENVI/Studies/Reports/envi01/10-ch3-e.html

Web exhibits, Pigments trough the ages - Emerald Green - Verde de Paris
http://webexhibits.org/pigments/indiv/overview/emerald.html

Frear, Chemistry of Insecticides, Fungicides and Herbicides, 2nd edition, D. Van Nostrad Company, Inc. 1948 – Biografia de Paul Hermann Muller, http://www.nobel-winners.com/Medicine/paul_hermann_muller.html

Microbial Degradation of Pesticides Reading Assignment
http://jan.ucc.nau.edu/~doetqp-p/courses/env440/env440_2/lectures/lec25/lec25.html

History of Pesticide Use, 2002
http://oregonstate.edu/instruction/bi301/pesthist.htm

Global Use of Pesticides, 2001
http://oregonstate.edu/instruction/bi301/pestglob.htm

Mosquitoes, DDT, and Human Health, 2002
http://www.21stcenturysciencetech.com/articles/Fall02/Mosquitoes.html

Bibliografia de Robert Lee Metcalf,
http://www.nap.edu/html/biomems/rmetcalf.html
Resistência a Pesticidas,
http://www.cals.ncsu.edu:8050/course/ent425/tutorial/A

What's IPM, University of California, 2003
http://www.ipm.ucdavis.edu/IPMPROJECT/about.html

In CiênciaJ Número 33 - Julho-Dezembro 2003
http://www.ajc.pt/cienciaj/n33/avulso1.php
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O ADN mitocondrial de Eva

A tecnologia do ADN recombinante melhorou tanto a precisão da análise genética que, como uma ferramenta, a genética está encontrando aplicações em campos de investigação inteiramente novos. A aplicação da genética molecular à antropologia é, pelo menos para mim, uma surpresa que tem produzido um resultado inesperado. Como um adendo, eu gostaria de relatar a descoberta da tão conhecida Eva Mitocondrial. Os métodos empregados nessa pesquisa, senão o assunto em si, já nos serão familiares através dos estudos feitos previamente neste capítulo de genética molecular na medicina.
A surpreendente e controversa teoria da Eva Mitocondrial, demonstrada há alguns anos, é actualmente aceita por muitos cientistas, e novos dados experimentais deram suporte a essa conclusão inicial. A hipótese da Eva Mitocondrial sugere que o grau de similaridade genética entre seres humanos (ou outras espécies) pode ser quantificado pelo número de mutações dentro do ADN do genoma mitocondrial (ADNmt).
Os genes de uma criança são aproximadamente igualmente herdados do pai e da mãe. O rearranjo genético que ocorre a cada geração sucessiva dá ao feto duas cópias de cada gene de uma escolha de quatro possíveis dentre os genomas dos pais. Esta reprodução sexual junta com recombinação genética aumenta a diversidade da resposta genética em relação a pressões evolucionárias.
A herança do ADN mitocondrial (ADNmt) é uma excepção à reprodução sexual
Acredita-se que a mitocôndria, organela essencial ao metabolismo anaeróbico, teria sido uma bactéria primitiva que se tornou um parasita obrigatório de células eucarióticas. As mitocôndrias possuem muitos componentes da bactéria, incluindo uma quantidade limitada do seu próprio ADN. De singular na teoria da Eva Mitocondrial é a descoberta de que o ADNmt é herdado apenas da mãe, não havendo nenhuma contribuição do pai na época da fertilização. Quando o espermatozóide penetra o óvulo, não há entrada de mitocôndria. Apenas o ADN da cabeça do espermatozóide contribui para a formação do zigoto. A única fonte de ADNmt do zigoto é materna. A mãe passa o seu componente de ADN mitocondrial para suas filhas e filhos.
Os filhos não podem passar sua informação genética adiante; a informação pode ser passada apenas pelas filhas. O ADNmt é uma molécula circular, com apenas 16.500 nucleotídeos, que codificam ARN ribossómico e de transferência, assim como algumas enzimas da cadeia de transporte de electrões presentes na mitocôndria. Outras enzimas da mitocôndria são codificadas pelo ADN nuclear celular.
Investigadores de Berkeley usaram estudos de ADN mitocondrial para traçarem ancestrais humanos, contando com o fato de que o pouco apreciado ADN mitocondrial é passado de geração a geração somente por fontes maternas.
Eles retiraram amostras de ADN mitocondrial de 147 diferentes indivíduos escolhidos dos tantos grupos antropologicamente diversos quanto possíveis dentre a população da Terra. Aborígenes australianos, índios americanos, negros africanos, europeus do Norte, e outros foram todos amostrados. O ADNmt de cada indivíduo foi submetido a um extensivo mapeamento por RFLP.
Uma análise comparativa das mutações em cada amostra foi feita. Os pesquisadores de Berkeley formaram uma árvore evolutiva, assumindo que, quanto menor as diferenças mutacionais entre dois indivíduos mais proximamente relacionados eles estavam.
O resultado surpreendente foi que todas as ramificações da árvore se juntaram em um tronco rapidamente. Rapidamente significa que usando uma taxa assumida para as mutações no ADNmt, todos os indivíduos testados poderiam ser considerados tendo uma mãe comum africana em um passado evolutivo recente. Estes investigadores concluíram: "Todos estes ADN's mitocondriais partiram de uma única mulher que se postula ter vivido 200.000 anos atrás, provavelmente na África. Todas as populações examinadas, excepto a população africana, têm origens múltiplas, implicando que cada área foi colonizada repetidamente." O ancestral africano foi chamado Eva Mitocondrial pela imprensa. A descoberta de uma convergência na árvore evolutiva a um único ancestral materno comum que viveu na África sub-saariana há apenas 200.000 anos é sem dúvida dramática. Muitas potenciais falhas nessa teoria têm sido extensivamente debatidas.
Os 200.000 anos estimados ao ancestral comum poderiam ser um erro significante se fosse assumido que a taxa de mutação para o ADNmt estivesse errada. O ADN mitocondrial possui uma taxa de mutação mais alta do que o ADN nuclear, porque a mitocôndria não possui o mecanismo de reparo extensivo do ADN, presente no núcleo da célula. Mesmo assim a taxa de mutação não pode estar errada por mais de um ou dois factores. A selecção dos 147 indivíduos pode não ser suficiente para mostrar outras diversas tendências evolutivas nos seres humanos. Em adição, uma ramificação da árvore evolutiva testada usando o ADNmt é perdida quando ocorre uma geração em que apenas nascem filhos. Isto leva a potenciais becos sem saída neste este tipo de análise. Alguns antropólogos se incomodam com o fato das gravações fósseis da evolução do homem não se igualarem a este curto espaço de tempo sugerido pelas gravações do ADN. Mesmo assim, muita discussão e os novos dados dos últimos anos sugerem que o modelo está basicamente correcto. A análise de ADNmt para o estudo da evolução em muitas espécies está sendo genericamente aceita. A tecnologia do ADN recombinante se tornou uma ferramenta aceita e altamente quantitativa para os estudos em antropologia, evolução e ecologia.

Neurotransmissores

A sinapse é a unidade processadora de sinais de todo o sistema nervoso. Esta estrutura microscópica permite o contacto por aproximação entre as células nervosas e as outras células do organismo.

A transmissão destes sinais depende de neurotransmissores e neuroreceptores. É do funcionamento perfeito destas substâncias que depende a grande flexibilidade do sistema nervoso.


Papel dos Aminoácidos

Metabolismo

Roberto Takata

Introdução
O METABOLISMO1 é o conjunto das reacções físico-químicas2 que ocorrem em um organismo3. Nos organismos actuais tais conjuntos são bastante intrincados com milhares a milhões de reacções diferentes interconectadas. As reacções têm suas taxas alteradas por estímulos ambientais e também pela taxa de outras reacções: pela alteração de factores como concentração de reagentes, quantidades de catalisadores, activadores, competidores e inibidores de reação e também por elementos físicos como temperatura e distribuição espacial dos reagentes.
Por meio dessas reacções os organismos reagem ao ambiente e às alterações nas condições internas, mantendo um estado interno mais ou menos estável – a homeostase4, 5. Essa estabilidade, no entanto, não é absoluta. As condições internas do organismo não permanecem exactamente as mesmas ao longo do tempo – o ponto de equilíbrio, isto é, o estado em torno do qual as condições tendem a variar, geralmente muda com o desenvolvimento do organismo ou periodicamente: a temperatura corporal média de um animal em hibernação é diferente da do mesmo animal em estado activo ou a concentração hormonal em plantas adultas certamente é diferente da de plântulas imaturas. (O desenvolvimento orgânico, na verdade, pode ser pensando como a variação do ponto de equilíbrio ao longo do tempo, fazendo com que as características dos organismos mudem ao longo do tempo – seu tamanho, sua concentração interna de sais, seu comportamento e assim por diante.) Embora os processos de alterações físico-químicas nos organismos actuais tendam a ser complexos, mesmo em alguns sistemas simples (e inorgânicos) podemos perceber essa tendência ao equilíbrio (dinâmico) em respostas a alterações externas e internas – uma reação química simples, por exemplo, pode-se deslocar para um ou outro sentido de acordo com a concentração maior ou menor de reagentes ou produtos; ou ainda um sistema de tampão ácido-base pode contrabalançar (dentro de uma certa faixa de variação) a adição ou subtracção de protões à solução permitindo que o pH varie muito pouco.
As reacções que compõem o METABOLISMO podem ser divididas em dois grandes grupos interdependentes:
  • Catabolismo6 – é o conjunto de reacções que degradam as substâncias em componentes menores (ou melhor seria dizer menos energéticos). Geralmente são acompanhadas da liberação da energia contida nas ligações químicas rompidas. Essa energia pode ser perdida para o ambiente ou utilizada em outros processos biológicos – movimento, síntese de compostos, reprodução, crescimento e desenvolvimento.
  • Anabolismo6 – é o conjunto de reacções que produzem compostos e substâncias a partir de componentes menores (ou menos energéticos – muitas vezes as reacções não envolvem a união de dois componentes, mas a transformação de um componente em um componente mais energético, como no caso da alteração do estado de oxidação de iões). Frequentemente vale-se da energia liberada nas reacções catabólicas para produzir dos compostos necessários no crescimento e desenvolvimento do organismo – ou pode utilizar-se mais directamente de fontes externas de energia como no caso da fotossíntese.
Da relação entre os processos catabólicos e anabólicos depende o que ocorre com o organismo. Se os processos catabólicos predominam, o organismo pode se degenerar até sua total degradação – como ocorre no processo de senescência (envelhecimento) – se são os processos anabólicos que predominam, o organismo pode acumular reservas e recursos, crescendo em tamanho, organização e complexidade. Porém os processos anabólicos dependem fundamentalmente dos
catabólicos como fonte de energia (e componentes). No caso em que ambos os processos ocorrem em intensidades equivalentes, as condições internas tendem a permanecer mais ou menos iguais.
O catabolismo e o anabolismo são em grande medida processos opostos – o que é produzido por um processo o outro desfaz. Isso faz com que, grosso modo, sejam incompatíveis. Se ambos ocorrerem no mesmo lugar ao mesmo tempo teremos pouco mais do que o trabalho de Penélope ou de Sísifo. É indispensável uma separação desses processos – a separação temporal pode ser obtida por meio de controlos que inibem um dos processos enquanto o outro está correndo, a separação espacial pode ser alcançada por meio da compartimentalização.
O METABOLISMO, sendo fundamentalmente um processo de transferência e transformação de energia (vide nota 2), está sob acção dos princípios termodinâmicos. Uma importante implicação disso é que, dado que os processos biológicos dependem dos processos metabólicos, a Vida só pode ocorrer em sistemas ou subsistemas abertos – isto é, que troquem materiais e energia com o ambiente (ou pelo menos que não sejam isolados, que troquem energia com o meio externo). Isso porque se não há troca de energia com o meio, o metabolismo não pode continuar indefinidamente já que as transformações sempre geram uma quantidade de energia na forma que não pode ser utilizada no processo – a energia útil (a que pode realizar trabalho nas condições do sistema) é gradativamente consumida (isto é, transformada em uma forma que não é capaz de realizar trabalho) até que o processo de transformação não possa mais prosseguir. Os seres vivos devem então se interpor a um fluxo de energia – como a da luz solar rumo ao espaço sideral no caso dos organismos fotossintéticos ou que deles dependem (caso da maioria dos organismos conhecidos). Corte-se o fluxo de energia e, rapidamente, a Vida deixa de existir – como flores no escuro ou pessoas em inanição7. O corte do fluxo não precisa se dar necessariamente na entrada de energia, pode ocorrer também pelo bloqueio da saída de energia – impeça-se, por exemplo, a dispersão de energia térmica com camadas e camadas de material isolante e em um tempo bem curto atingiremos uma situação bastante crítica8.
Embora o METABOLISMO seja essencial para os processos biológicos, certos organismos em condições especiais podem suspender suas actividades metabólicas, retomando-as quando as condições lhes forem mais favoráveis – essa capacidade de retomada das actividades metabólicas e das demais actividades biológicas depende da preservação de sua estrutura interna9. Para a maioria dos casos, no entanto, a cessação das actividades metabólicas significa a morte. Um leve
asteísmo está presente neste facto: embora seja extremamente embaraçoso aos biólogos a incapacidade de se dar uma definição de Vida, podemos definir a morte de um organismo como a cessação irreversível de seus processos metabólicos.

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Notas
Nota1: do grego metabolê, ês (metá 'para além de' + bálló 'lançar, jogar') 'transformação; mudança de natureza, carácter ou costume'. Noção que surge em outros vocábulos como a-, hemi- e holometábolo, referindo-se à condição de certos organismos – notadamente insectos – de passarem ou não pelo processo de metamorfose (uma transformação em sua constituição física), ou metábole, figura de linguagem que consiste na repetição das mesmas ideias, apenas com palavras diferentes, ou a repetição das mesmas palavras com alteração na ordem.
Nota2: em uma definição mais ampla, o metabolismo pode ser entendido como o conjunto de transformações energéticas que ocorrem em um sistema físico e as alterações físicas que causam essas transformações, acompanham-nas ou delas decorrem – nesse sentido, poderemos falar até mesmo de metabolismo de geladeiras e estrelas. Uma definição ainda mais ampla seria o conjunto de operações realizadas sobre elementos de um sistema – aqui, sistemas abstractos como programas de computadores (mesmo desconsiderando-se a questão do hardware) ou mesmo uma equação matemática podem ser acusados de ter metabolismo.
Nota3: 'no organismo' - por vezes, tais reacções podem ocorrer também fora do organismo: algumas espécies iniciam sua digestão extracorporalmente, como as das aranhas – cujo veneno injectado na vítima digere seus tecidos, permitindo ao predador apenas sorver a massa liquefeita.
Nota4: Termo criado pelo fisiologista americano Walter Cannon (1871-1945), cunhado sobre o grego hómois, a, on 'semelhante, de mesma natureza' e stásis, eós 'estabilidade, fixidez'.
Nota5: Não deixa de ser irónico que por meio do metabolismo (essencialmente uma transformação, mudança nas condições) se obtenha a homeostase (essencialmente uma permanência das condições internas). Ainda que possamos ver uma ironia – certamente involuntária – nisso, não chega a ser um paradoxo. Lembremo-nos da passagem de "Alice do outro lado do espelho" de Lewis Carrol, em que a Rainha de Copas diz para Alice: "É preciso correr o mais rápido que você puder para ficar no mesmo lugar!" ou do ato de baldear a água para fora de uma canoa furada ou da expressão "enxugar gelo" – como o ambiente interno e o externo tendem a se alterar com o tempo (ver no texto principal a questão sobre as implicações termodinâmicas do metabolismo), as transformações metabólicas, em muitos casos, actuam no sentido de contrabalançar essas alterações.
Nota6: "Catabolismo" e "anabolismo" – dos gregos katá 'para baixo' e aná 'para cima'.
Nota7: A energia útil que mantém o processo varia de sistemas para sistema. Apesar das alegações em contrário, para humanos é inútil a simples presença de energia na forma luminosa – assim como para um carro à gasolina, energia eléctrica não serve; não estamos aparelhados para utilizar directamente essa fonte de energia. Para nosso organismo, a energia deve estar na forma de ligações químicas de compostos orgânicos como açúcares e gorduras.
Nota8: Tal bloqueio impede o funcionamento de outros sistemas além de organismos individuais. Vide o que acontece com uma cidade que sofre com uma greve prolongada dos colectores de lixo.
Nota9: "depende da preservação de sua estrutura interna" – Assim, o sonho da ressuscitação após o congelamento do corpo permanece bastante distante, a despeito das promessas de algumas empresas, pois o processo de congelamento de um volume tão grande quanto o humano não é rápido o bastante para se evitar a formação de cristais de gelo maiores – que rompem a integridade das células.

Cancro da mama

Quais os tratamentos disponíveis?

Durante muitos anos, os principais tratamentos para o cancro da mama avançado, têm sido a quimioterapia e a radioterapia: fazendo parar a evolução do cancro por meio de poderosos fármacos citotóxicos (que destroem as células) ou de radiação. Para além destes, hoje em dia começam a estar disponíveis novas terapêuticas muito importantes, incluindo fármacos que se dirigem directamente às células cancerosas, sem os, por vezes graves, efeitos secundários associados aos antigos tratamentos.

Quimioterapia

O termo quimioterapia engloba o tratamento com muitos fármacos diferentes, usados sozinhos (quimioterapia com um único agente), ou em associações de dois ou mais fármacos (terapêutica combinada). Normalmente administram-se vários ciclos de quimioterapia com intervalos de algumas semanas e portanto o período total de tratamento pode prolongar-se por vários meses.

Alguns fármacos são ingeridas oralmente e outros são administrados por injecção intravenosa. Os efeitos secundários mais frequentemente referenciados, que variam de gravidade conforme os fármacos usados, incluem: fadiga, náuseas, vómitos e perda de cabelo. Podem-se prescrever fármacos designados por antieméticos, para prevenir ou aliviar o enjoo durante o tratamento. O cabelo, que cai por causa da quimioterapia – embora nem todos os fármacos tenham esse efeito – normalmente volta a crescer dentro de poucos meses depois da conclusão do tratamento.

Os fármacos usados na quimioterapia podem originar toxicidade hematológica (do sangue), que por sua vez, pode causar uma diminuição na produção das células sanguíneas e também nas plaquetas, envolvidas no processo de coagulação. Esta toxicidade pode ter como resultado a fadiga (devido à falta de eritrócitos), diminuição da resistência às infecções (falta de leucócitos) e aumento da susceptibilidade à formação de hematomas/hemorragia (falta de plaquetas).

Durante o período de tratamento fazem-se regularmente análises ao sangue para verificar se o número das células sanguíneas se reduziu. Se for necessário pode-se recorrer a transfusões ou tratamentos médicos para repor o número de eritrócitos. Também há medicamentos disponíveis para melhorar o número de leucócitos e, portanto, aumentar a resistência do doente às infecções. Por fim, podem-se administrar outros tratamentos para prevenir a infecção.

Radioterapia

A radioterapia consiste no tratamento do cancro por meio de raios-X ou de outras fontes de radioactividade. As fontes deste tipo produzem radiações ionizantes que, ao passar através do tecido doente, destroem ou abrandam o desenvolvimento das células anómalas. Contudo, a radioterapia pode ter efeitos secundários, tais como danos graves no tecido normal.

A radioterapia é frequentemente utilizada em conjugação com outras formas de tratamento do cancro. No cancro da mama, a radioterapia é muitas vezes usada depois da remoção cirúrgica dum cancro da mama maligno, para destruir algumas células remanescentes do tumor. A radioterapia também pode ser usada para reduzir o tamanho dum tumor, ou para destruir células do cancro da mama que se tenham deslocado para outras partes do corpo. A radioterapia, no entanto, só é usada quando os benefícios compensam largamente os riscos de causar danos no
tecido são.

Terapêutica hormonal

As hormonas, substâncias que controlam as funções normais do corpo, também afectam algumas células do cancro da mama. Isto é especialmente verdade em relação às hormonas da mulher, tal como o estrogénio, relativamente ao qual os investigadores acreditam poder exacerbar o desenvolvimento das células cancerosas. Consequentemente, algumas doentes com cancro podem ser tratadas com fármacos que têm hormonas ou que inibem a acção destas. O uso das preparações hormonais é seguro e os seus efeitos secundários raramente são graves.

A terapêutica hormonal permite regressões que perduram muitos anos.

Terapêutica com anticorpos monoclonais

O aumento do conhecimento acerca dos genes humanos responsáveis pelo crescimento das células cancerosas, conduziu a uma nova fase no tratamento do cancro da mama. Uma nova abordagem dirigida ao tratamento do cancro da mama, envolve o uso de anticorpos monoclonais.

Um anticorpo monoclonal é uma proteína sintética que foi preparada expressamente para atingir células cancerosas específicas no organismo.

O anticorpo monoclonal actua bloqueando a função dum gene de cancro específico, associado ao crescimento de cancro da mama agressivo. Além disso, só atinge as células cancerosas não actuando nas células sãs. Portanto, os efeitos secundários experimentados pelas doentes com esta terapêutica são habitualmente de natureza ligeira – a maior parte das vezes febre e arrepios. Também se acredita que este tipo de terapêutica pode estimular o sistema imunitário para destruir as células cancerosas.

A única terapêutica actualmente existente com anticorpos monoclonais atinge e bloqueia a função do gene HER2 do cancro. Os investigadores concluíram que a produção excessiva de HER2 contribui para o crescimento descontrolado das células, o que constitui a marca característica do cancro. As doentes nesta situação, designam-se por HER2-positivas.

Calcula-se que, aproximadamente, uma em cada cinco doentes com cancro da mama metastizado, é HER2-positiva e investigações recentes sugerem que as doentes HER2-positivas são mais susceptíveis às formas mais agressivas de cancro da mama. Por esta razão, determinar o status do HER2 da doente é um dado importante na decisão a tomar sobre as melhores opções de tratamento para o cancro da mama metastizado.

O uso de um anticorpo monoclonal, representa uma nova e promissora opção para tratar doentes HER2-positivas. Contudo, este tipo de tratamento está condicionado à existência de um diagnóstico fiável do status de HER2. O diagnóstico do status do HER2, é feito utilizando testes altamente sensíveis.

Estes testes não só determinam se uma doente é ou não HER2-positiva, mas também constituem um prognóstico acerca das doentes que poderão responder a este tratamento.

Como mostram os resultados clínicos, esta nova abordagem do cancro da mama é um grande avanço para as doentes HER2-positivas, proporcionando uma melhoria significativa na qualidade de vida e prolongando a vida das doentes com formas agressivas de cancro da mama. Se você for HER2-positiva, pode candidatar-se a este novo tipo de tratamento. Determinar o seu status de HER2 é, naturalmente, um primeiro passo essencial antes de, juntamente com o seu médico, decidir qual é o melhor tratamento para si.

Tratamento: como é que o médico decide?

O especialista do cancro (oncologista), ao escolher o seu programa de tratamento, tem em conta numerosos factores, entre os quais a idade, o estado geral, a localização das metástases, e o tipo de células cancerosas envolvidas.

A principal prioridade na escolha do tratamento, é a melhoria da qualidade de vida da doente. A decisão acerca do tratamento só pode ser tomada depois de uma cuidadosa consideração do perfil individual de cada doente, que pode incluir as preferências da própria, a juntar à informação clínica.

Testar o status do receptor hormonal da doente é importante porque certos tipo de tumor podem responder à terapêutica hormonal. É igualmente importante testar o status do HER2 da doente, dado que disso depende a selecção das doentes HER2-positivas, que podem ser candidatas ao tratamento com anticorpos monoclonais anti-HER2.

A terapêutica dirigida, como seja o uso de anticorpos monoclonais, representa uma nova área do tratamento do cancro, sendo uma abordagem individualizada para responder a condições genéticas específicas, que podiam conduzir a um crescimento incontrolado do cancro. A terapêutica dirigida assenta em testes de diagnóstico sofisticados, para se fazer uma escolha eficaz das doentes que mais provavelmente responderão a este tipo de tratamento. Além disso, esta nova abordagem ao tratamento tem como alvo específico as células cancerosas e não tem os efeitos secundários debilitantes associados ao tratamento convencional, oferecendo uma opção de tratamento individualizado, com vantagens comprovadas na sobrevivência, para certas doentes.

Independentemente da abordagem, o perfil único da doente é avaliado tendo em idêntica consideração os riscos e os benefícios do tratamento específico escolhido. O objectivo é sempre alcançar a remissão ou prolongar a vida, melhorando a sua qualidade.

Bioética

Bioética ou ética da vida. A bioética pode ser definida como um estudo interdisciplinar que procura estabelecer as normas que devem reger a acção no campo da intervenção técnico-científica do homem sobre a sua própria vida.

1. Progressos

O século XX foi marcado por enormes progressos no domínio das ciências médicas, que permitiram curar muita doenças consideradas incuráveis e sobretudo prolongar a vida humana. Entre os avanços científicos que o permitiram destacam-se os seguintes:

  • A introdução das sulfamidas e dos antibióticos que permitiram
    controlar as infecções.
  • A substituição dos órgãos em falência (diálise, ventilação mecânica, transplantes de órgãos, etc.).
  • A identificação do código genético e das leis que presidem à formação da vida (inseminação artificial, engenharia genética, etc.).
  • O desenvolvimento das técnicas de diagnóstico (radiografias, ecografias, diagnóstico pré-natal, etc.)

Estes extraordinários progressos alteraram por completo a pratica da medicina, que passou a contar com muitos mais agentes, assim como a própria relação do homem com a própria ciência.

2. Problemas Éticos

A evolução das ciências médicas até ao século XX processou-se de um modo que não suscitou grandes problemas éticos, estando os princípios fundamentais consagrados no célebre "Juramento de Hipócrates". As experiências médicas que eram realizadas, por serem muito limitadas e não suscitavam grandes problemas.

Os progressos que se registaram a partir do século XX só foram possíveis porque as ciências médicas passaram a ter uma enorme complexidade e a envolverem grandes interesses económicos, onde participam uma enorme rede de agentes (médicos, farmacêuticos, biólogos, químicos, engenheiros, etc) e instituições (empresas, fundações, universidades, etc). Os interesses passaram a ser múltiplos, e nem sempre prevalecem os do saber.

Na primeira metade deste século ocorreram muitas experiências científicas que colocaram em causa os princípios mais elementares da dignidade da pessoa humana. Os casos mais conhecidos, mas não os únicos, deram-se na Alemanha durante o domínio nazi (1933-1945) onde milhares de seres humanos foram mortos em experiências médicas.

Na segunda metade do século XX, continuaram a produzirem-se avanços espectaculares na biologia, biotecnologia e medicina. Ora muitos destes progressos continuam a usar seres humanos como cobaias, muitas vezes sem o seu conhecimento. A utilização de animais passou igualmente a ser questionada, sobretudo quando a estes são infligidos sofrimentos desmesurados.

Cresceram também de forma espectacular as indústrias ligadas às áreas da saúde, nomeadamente as empresas farmacêuticas que se tornaram verdadeiros potentados multinacionais. Fruto destes progressos científicos e do dinheiro delas obtido, muitas experiências passaram a ser feitas com um único objectivo: a projecção mediática (fama) e o lucro dos laboratórios, médicos ou cientistas que as realizam. As "doenças" passaram a ser um dos negócios mais lucrativos do mundo, facto que só por si alterou radicalmente as relações entre o médico e o doente.

Este último sente-se frequentemente explorado por redes de interesses que apenas consegue vislumbrar os seus contornos.

O problema dos limites da ciência e das experiências médicas, assim como os interesses nelas envolvidas, passou a estar na ordem do dia. Em muitas áreas tornou-se cada vez mais difícil compatibilizar o progresso científico com o respeito pela vida humana e os valores culturais assumidos como estruturantes das nossas sociedades.

Os diversidade de temas abordados na bioética, espelham melhor que nada a complexidade que adquiriram actualmente estes problemas.

3. Principais temas da bioética

  1. O diagnóstico pré-natal; conselhos genéticos; eugenia fetal; terapia genética; práticas abortivas; esterilização masculina e feminina por diversos motivos;
  2. Reprodução humana "artificial" ou assistida em todas as suas modalidades e suas correspondentes implicações técnicas (bancos de esperma, bancos de embriões, mães de aluguer, etc.);
  3. Experiências com seres humanos, embriões e cadáveres em qualquer fase do ciclo vital:
  4. Informações clínicas e a sua comunicação ao paciente; reanimação; eutanásia e direito a uma morte digna;
  5. Terapia e manipulação genética em todas as suas formas;
  6. Suicídio e ajuda ao suicídio;
  7. Transplantes de órgãos humanos;
  8. Trans-sexualidade:
  9. Investigação e desenvolvimento de armas biológicas e químicas;
  10. Biogenética animal e vegetal.

4. Está a actividade científica acima das questões éticas?

Capa de um suplemento do jornal O Público, de 18/2/2001, onde se publica os resultados de uma investigação realizada ao longo de 11 meses nos cinco continentes, por três jornalistas de The Washington Post, sobre testes que as multinacionais farmacêuticas realizam no mundo. A maioria das pessoas que foram utilizadas nestes testes, quase todas de países pobres, ignoravam que estavam a ser usadas como cobaias humanas, ou desconheciam a totalidade dos riscos que corriam.

A Terra esfriou mais cedo?

Por John W. Valley

Novas medições sugerem que o nosso planeta pode não ter passado seus
primeiros 500 milhões de anos afogado em lava. É possível que oceanos,
continentes e a vida tenham surgido mais cedo. Manuais de geologia afirmam
que nosso planeta passou seus primeiros 500 milhões de anos coberto por
magma quente, mas essa tese pode estar errada. Cristais de zircão revelam
que a superfície da Terra talvez tenha esfriado bem antes, permitindo desde
cedo o surgimento de oceanos, continentes e oportunidades para a origem da
vida.


Um novo conceito sobre como era a Terra primordial, coberta por oceanos há
4,4 biliões de anos, contrasta com o mundo quente e hostil normalmente
representado nos livros didácticos. A Lua estava mais próxima naquele
tempo, por isso parecia maior do que nos dias de hoje.

Na sua infância, que começou há cerca de 4,5 biliões de anos, a
Terra brilhava como se fosse uma estrela ténue. Oceanos incandescentes de
magma alaranjado ondulavam na superfície do planeta após as frequentes
colisões com imensos meteoros, alguns do tamanho de pequenos planetas, que
orbitavam o Sol recém-criado. Viajando em média a 90 mil km/h (75 vezes a
velocidade do som), cada corpo impactante se incendiava na superfície da
Terra, estilhaçando, derretendo e até se vaporizando no momento do contato.

Logo no início, o ferro denso afundava no magma para formar o
núcleo metálico, liberando gravidade para derreter todo o planeta.
Meteoritos continuaram a colidir com a Terra durante centenas de milhões de
anos.
Ao mesmo tempo, no núcleo da Terra, o decaimento de elementos
radioactivos produzia seis vezes mais calor do que hoje. Essas condições
infernais tinham de se acalmar para que as rochas derretidas se
solidificassem, para que os continentes se formassem, para que a atmosfera
de vapor se condensasse, e para que a primeira forma de vida pudesse
evoluir. Mas, quão rapidamente a superfície da Terra esfriou? A maioria dos
cientistas assume que o ambiente infernal durou 500 milhões de anos, uma
era geológica baptizada como Hadeana. O maior apoio para tal visão vem da
ausência de rochas intactas com mais de 4 biliões de anos – e dos primeiros
sinais fossilizados de vida, que surgiram muito tempo depois.
Nos últimos anos, entretanto, geólogos – incluindo meu grupo da
Universidade de Wisconsin-Madison – descobriram cristais de minério de
zircão antigos cuja composição química está mudando o conceito sobre os
primórdios da Terra. As propriedades incomuns desses minerais duráveis –
cada um do tamanho do ponto final desta sentença - possibilitou aos
cristais preservar indícios sobre como teria sido o ambiente da Terra
quando eles se formaram. Essas minúsculas cápsulas do tempo carregam
evidências de que oceanos habitáveis para a vida primordial e, mesmo os
continentes, poderiam ter surgido 400 milhões de anos antes do que
geralmente se pensava.

Resfriamento
Desde o século XIX cientistas vêm tentando calcular quão
rapidamente a Terra se resfriou, mas poucos esperavam descobrir evidências
sólidas.
Embora os oceanos de magma, no início, estivessem com mais de
1.000oC, a ideia tentadora de uma Terra primitiva temperado veio de
cálculos da termodinâmica. Os números indicam que a crosta poderia ter se
solidificado na superfície em 10 milhões de anos. Como o planeta endureceu
externamente, a fina camada de rocha solidificada teria isolado o exterior
das altas temperaturas vindas do interior da Terra. Se houve períodos
tranquilos adequados entre os grandes impactos de meteoritos, se a crosta
era estável, e se o efeito estufa da atmosfera não aprisionou muito calor,
então as temperaturas poderiam ter caído rapidamente, abaixo do ponto de
ebulição da água. Além disso, o Sol primitivo era mais fraco e deve ter
contribuído com menos energia.
Para a maioria dos geólogos, entretanto, o incontestado nascimento
turbulento do planeta e os poucos indícios no registro geológico parecem,
contrariamente, apontar para um prolongado clima ultra quente. A rocha
intacta mais antiga conhecida é a Gnaisse Acasta, de 4 biliões de anos, no
noroeste do Canadá. Essa pedra, porém, formou-se nas profundezas do planeta
e não carrega nenhuma informação sobre as condições da superfície. A
maioria dos cientistas assume que as condições infernais presentes na
superfície do planeta devem ter obliterado qualquer rocha que se formou
muito cedo. As rochas mais antigas conhecidas que se originaram sob a água
(e, portanto, em ambientes relativamente mais frios) datam de 3,8 biliões
de anos atrás. Esses sedimentos, expostos em Isua, no sudoeste da
Groenlândia, também contêm a evidência de vida mais antiga.

Escavações Profundas
Nos anos 1980, os cristais de zircão começaram a acrescentar novos
dados sobre a Terra primitiva, quando uns poucos e raros grãos em Jack
Hills e em Mount Narryer, no oeste da Austrália, foram reconhecidos como os
materiais terrestres mais antigos – chegando a quase 4,3 biliões de anos.
Mas a informação que esses cristais carregavam parecia ambígua, em parte
pelo fato de os geólogos estarem inseguros quanto à identidade da rocha
matriz. Uma vez formados, os cristais de zircão são tão duráveis que podem
persistir, mesmo se a sua rocha matriz for levada à superfície e destruída
por exposição ao ar e erosão. O vento ou a água podem então transportar os
grãos sobreviventes por grandes distâncias antes de o mineral se incorporar
a depósitos de areia e cascalho que, mais tarde, solidificam-se em rochas
sedimentares. De facto, os cristais de zircão – talvez milhares de
quilómetros distantes de suas fontes – foram descobertos incrustados em um
banco de cascalhos fossilizado chamado de conglomerado de Jack Hills.
Assim, a despeito do entusiasmo com a descoberta desses fragmentos
primevos da Terra, a maioria dos cientistas, incluindo eu, continuou a
aceitar a visão de que o clima do nosso jovem planeta era Hadeano. Foi
depois de 1999 que os avanços tecnológicos permitiram novos estudos com o
zircão do oeste da Austrália, o que desafiou a tese convencional sobre a
história mais antiga da Terra.
Os cristais de zircão australianos não revelaram os seus segredos
tão facilmente. Em primeiro lugar, o conglomerado de Jack Hills está
isolado na fronteira de imensas fazendas de ovelhas situadas 800 km ao
norte de Perth, a cidade mais isolada da Austrália. O conglomerado foi
depositado três biliões de anos atrás e marca o limite noroeste de um
conjunto de formações rochosas, todas anteriores a 2,6 biliões de anos.
Para conseguir recuperar menos do que uma pitada de cristais de zircão,
colectamos centenas de quilos de rochas desses afloramentos remotos e os
transportamos até nosso laboratório para triturá-los e separá-los, como se
estivéssemos procurando grãos especiais na areia de uma praia.
Uma vez extraídos de sua rocha-fonte, os cristais individuais
poderiam ser datados, já que os zircões são excelentes cronómetros
geológicos. Além da sua longevidade, contêm traços de urânio radioactivo,
que decai para chumbo a um ritmo conhecido. Quando um cristal de zircão se
forma a partir de magma solidificado, átomos dos elementos zircónio,
silício e oxigénio combinam-se em proporções exactas (ZrSiO4) para criar
uma estrutura cristalina exclusiva do zircão; o urânio ocasionalmente os
substitui como um traço de impureza. Átomos de chumbo, por outro lado, são
muito grandes para substituir adequadamente qualquer dos elementos da
composição, e por isso os cristais de zircão nascem virtualmente livres de
chumbo. O relógio urânio-chumbo começa a funcionar tão logo o zircão se
cristaliza, e a razão chumbo/urânio aumenta com a idade do cristal. Os
cientistas conseguem determinar a idade de um cristal de zircão não
danificado com 1% de exactidão. No caso da Terra primitiva isso representa
margem de erro de 40 milhões de anos.
A datação de partes específicas de um único cristal foi realizada
pela primeira vez no início dos anos 1980, quando William Compston e
colegas da Universidade Nacional Australiana em Canberra inventaram um tipo
de microssonda iónica, um instrumento bastante grande que baptizaram de
SHRIMP (sigla em inglês para microssonda iónica sensitiva de alta
resolução). Embora a maioria dos cristais de zircão seja quase invisível a
olho nu, a microssonda iónica lança um raio de iões tão estreitamente
focado que pode arrancar um pequeno número de átomos de qualquer alvo na
superfície do cristal. Um espectrómetro de massa mede então a composição
desses átomos ao comparar suas massas. Foi o grupo de Compston –
trabalhando com Robert Pidgeon, Simon A. Wilde e John Baxter, da
Universidade Curtin de Tecnologia, também na Austrália – que primeiro datou
os zircões de Jack Hills, em 1986.
Sabendo disso, abordei Wilde. Ele concordou em reinvestigar as
datações por urânio-chumbo dos cristais de zircão de Jack Hills como parte
da tese de doutorado de William H. Peck, meu aluno, hoje professor
assistente da Universidade Colgate. Em 1999, Wilde analisou 56 cristais
não-datados usando uma SHRIMP aprimorada na Universidade de Curtin.
Descobriu que cinco desses cristais apresentavam idade superior a 4
biliões de anos. Para nossa grande surpresa, a idade do mais velho deles
superava 4,4 biliões de anos. Algumas amostras provenientes da Lua e de
Marte têm idade similar, e os meteoritos são, geralmente, mais antigos; mas
nada com essa idade tinha sido descoberto na Terra, nem mesmo se esperava
descobrir. Quase todos achavam que, se esses antigos cristais de zircão
tivessem existido, a dinâmica das condições dos Hadeanos teria destruído a
todos. Nem desconfiávamos que a mais excitante das descobertas ainda estava
por vir.

Velhos Oceanos
Peck e eu fomos atrás dos zircões de Wilde, do oeste da Austrália,
porque estávamos de olho em uma amostra bem preservada do oxigénio mais
antigo da Terra. Sabíamos que os cristais de zircão poderiam reter
evidências, não apenas de quando sua rocha hospedeira teria se formado, mas
também de como isso ocorreu. Em especial, estávamos usando as proporções de
diferentes isótopos de oxigénio para estimar as temperaturas dos processos
que teriam levado à formação de magmas e rochas.
Os geoquímicos medem a proporção de oxigénio 18 (18O, um raro
isótopo com oito protões e dez neutrões, que representa cerca de 0,2% de
todo o oxigénio da Terra) para o oxigénio 16 (16O, o isótopo mais comum,
que compreende 99,8% do total). Esses átomos são chamados de isótopos
estáveis porque não sofrem decaimento radioactivo e, desse modo, não mudam
espontaneamente com o passar do tempo. Entretanto, a proporção de 18O e 16O
incorporada dentro do cristal durante a sua formação varia de acordo com a
temperatura ambiente na época em que o cristal se formou.
A razão 18O/16O é bem conhecida para o manto da Terra (a camada de
2.800 km de espessura embaixo da fina camada de 5 km a 40 km dos
continentes e da crosta oceânica). Magmas que se formam no manto sempre
apresentam quase a mesma proporção de isótopo de oxigénio. Por questão de
simplicidade, os geoquímicos ajustam essas proporções relativas àquela da
água do mar e expressam-na naquilo que é chamado de notação delta (?). O
?18O do oceano é 0 por definição, e o ?18O do zircão do manto é 5,3, o que
significa que tem uma razão 18O/16O maior que a da água do mar.
Por isso Peck e eu esperávamos descobrir um valor de 5,3 para o
manto primitivo, quando levamos os cristais de zircão de Jack Hills
analisados por Wilde, incluindo os cinco mais antigos, até a Universidade
de Edimburgo, naquele mesmo verão. Lá, John Craven e Colin Graham nos
auxiliaram a usar um tipo diferente de microssonda iónica, especialmente
projectada para medir as proporções do isótopo de oxigénio. Havíamos
trabalhado juntos muitas vezes nas décadas precedentes, para aperfeiçoar a
técnica e poder analisar amostras um milhão de vezes menores do que aquelas
analisadas no meu laboratório em Wisconsin.
Após 11 dias de análises ininterruptas e poucas horas de sono,
completamos as medições e descobrimos que as nossas predições estavam
erradas. Os valores ?18O do zircão eram superiores a 7,4.
Ficamos atordoados. O que poderia significar essa alta proporção
isotópica? Nas rochas mais jovens a resposta seria óbvia, porque amostras
assim são comuns. Um cenário previsível é o de que as rochas a baixas
temperaturas na superfície da Terra podem adquirir tal característica se
interagirem quimicamente com água de chuva ou do oceano. As rochas com alto
1?8O, quando soterradas e fundidas, formam o magma que retém esse alto
valor, que é então passado aos zircões durante a cristalização. Desse modo,
a água líquida e as baixas temperaturas são necessárias na superfície da
Terra para formar zircões e magmas com altos ?18O; não se conhece nenhum
outro processo que resulte nisso.
A descoberta de altas proporções de isótopos de oxigénio nos
zircões do conglomerado de Jack Hills significa que provavelmente já
existia água líquida sobre a superfície da Terra pelo menos 400 milhões de
anos antes das rochas sedimentares conhecidas mais antigas, da Groenlândia.
Se correto, é provável que já houvesse oceanos inteiros naquele tempo,
tornando o clima primitivo da Terra mais parecido com uma sauna do que com
uma bola de fogo Hadeana.

Vestígios Continentais
Poderíamos basear conclusões tão importantes sobre a história da Terra em
uns raros e diminutos cristais? Protelamos a publicação de nossas
descobertas por mais de um ano para reexaminar as análises. Enquanto isso,
outros grupos conduziam suas próprias pesquisas em Jack Hills.
Steven Mojzsis, da Universidade do Colorado, e colegas da
Universidade da Califórnia em Los Angeles confirmaram nossos resultados, e
todos publicamos estudos em 2001 descrevendo as descobertas.
As possíveis implicações dos achados acerca do zircão propagaram
entusiasmo no meio científico. Na violência superaquecida de um mundo
Hadeano, nenhuma amostra teria sobrevivido para que os geólogos pudessem
estudá-la. Mas esses cristais de zircão indicavam um mundo mais ameno e
familiar, além de fornecer meios para esclarecer os seus segredos. Se o
clima da Terra era frio o bastante para que existissem oceanos de água logo
no começo, então talvez os cristais de zircão pudessem nos revelar se os
continentes e outros aspectos da Terra moderna já existiam também naquele
tempo. Para tanto, tínhamos de olhar mais fundo nos cristais.
Mesmo o menor dos cristais de zircão contém outros materiais
encapsulados. Esse conteúdo, bem como o padrão de crescimento dos cristais
e a composição das impurezas, podem revelar muito sobre o local de origem
do zircão. Quando Peck e eu estudamos cristais de 4,4 biliões de anos, por
exemplo, descobrimos que continham partes de outros minerais, inclusive
quartzo. Isso nos causou surpresa, já que o quartzo é raro nas rochas
primitivas e provavelmente não existia na primeira crosta que se formou
sobre a Terra. A maior parte do quartzo vem de rochas graníticas, comuns em
crosta continental que se formou posteriormente.
Se os cristais de zircão do conglomerado de Jack Hill vieram de
uma rocha granítica, tal evidência daria suporte à hipótese de que são
amostras do primeiro continente criado no mundo. Mas é preciso ter cautela,
pois uma pequena quantidade de quartzo pode se formar nos últimos estágios
da cristalização do magma, mesmo se a rocha matriz não for granítica. Por
exemplo, cristais de zircão e uns poucos grãos de quartzo foram descobertos
na Lua, onde nunca surgiu uma crosta granítica do tipo continental.
Causaria surpresa a alguns cientistas se os cristais de zircão mais antigos
da Terra tivessem se formado num ambiente parecido com o da Lua primitiva
ou, então, por algum outro meio que hoje já não é mais comum, como o
impacto de meteoritos gigantes ou vulcanismo profundo. Até agora, porém,
não descobrimos evidências convincentes para essas hipóteses.
Há indícios, contudo, a favor da crosta continental nos
elementos-traço (aqueles que substituem o zircão em níveis abaixo de 1%).
Os cristais do conglomerado de Jack Hills têm elevada concentração desses
elementos, bem como padrões de európio e cério que são mais comummentes
formados durante a cristalização da crosta, o que significa que os zircões
foram constituídos próximos à superfície da Terra e não no manto. Além
disso, as proporções dos isótopos radioactivos de neodímio e háfnio – dois
elementos usados para determinar o tempo dos eventos de criação da crosta
continental – sugerem que partes significativas da crosta continental
formaram-se já há 4,4 mil milhões de anos.
A distribuição dos cristais de zircão antigos nos forneceu
evidências adicionais. A proporção de cristais de zircão com mais de 4
biliões de anos excede 10% em algumas amostras do conglomerado de Jack
Hills. Além disso, sua superfície está altamente desgastada, e as faces
originalmente angulosas estão arredondadas, sugerindo que os cristais foram
impelidos para longe de sua rocha originária. Como puderam viajar centenas
ou milhares de quilómetros, em forma de areia levada pelo vento, e ainda
assim se concentrar em um mesmo local, a menos que houvesse uma grande
quantidade deles? Como escaparam de ser soterrados e fundidos no calor do
manto a menos que uma fina crosta de tipo continental fosse estável o
bastante para preservá-los? Essas descobertas implicam que os cristais de
zircão já foram abundantes e se originaram em uma região ampla,
possivelmente uma massa de terra continental. Se foi assim, é provável que
as rochas daquele tempo ainda existam; uma perspectiva entusiasmante, pois
seria possível aprender muito com uma rocha intacta dessa idade.
Além do mais, a distribuição por idade dos zircões antigos é
desigual. As datações se aglomeram em certos períodos de tempo, e nenhum
cristal de outras eras foi descoberto. Meu ex-aluno de graduação Aaron J.
Cavosie, hoje professor assistente da Universidade de Porto Rico, descobriu
tal evidência mesmo em zircões de zona única, nos quais o núcleo se formou
mais cedo, há cerca de 4,3 biliões, com crescimento circundante posterior,
entre 3,3 biliões e 3,7 biliões de anos atrás. Na borda, o zircão é mais
jovem do que no núcleo, já que os cristais crescem concentricamente pela
adição de material aos grãos que estão na parte mais externa. Mas a grande
diferença etária, com lapsos de tempo, entre os centros e as bordas desses
cristais de zircão indica que dois eventos distintos ocorreram, separados
por um intervalo maior. Nos cristais de zircão mais jovens, fáceis de
obter, esse tipo de relação etária do centro para a borda resulta dos
processos tectónicos que derretem a crosta continental e reciclam os
cristais que estão no seu interior. Muitos cientistas tentam testar se
condições similares produziram os antigos cristais de zircão do
conglomerado de Jack Hills.
Mais recentemente, E. Bruce Watson, do Instituto Politécnico
Rensselaer, e Mark Harrison, da Universidade Nacional Australiana,
relataram níveis de titânio menores do que o esperado nesses antigos
cristais de zircão, sugerindo que a temperatura de seu magma original deve
ter sido de entre 800ºC e 650ºC. Essa temperatura baixa seria possível
somente se as rochas-matriz fossem graníticas; a maioria das rochas
não-graníticas derrete a altas temperaturas, e assim os seus zircões
deveriam conter mais titânio.

Um zircão é para Sempre
Desde que meus colegas e eu analisamos as proporções de isótopos de
oxigénio naqueles cinco cristais de zircão de Jack Hills, em 1999, os dados
que sustentam nossas conclusões aumentaram rapidamente. Investigadores em
Perth, Canberra, Pequim, Los Angeles, Edimburgo, Estocolmo e Nancy estão
analisando dezenas de milhares de cristais de zircão de Jack Hills com o
auxílio de microssondas iónicas e outras técnicas de datação, em busca de
amostras com mais de 4 biliões de anos.
Centenas de cristais de zircão recentemente descobertos vieram de
várias localidades com idade entre 4 bilhões e 4,4 bilhões de anos. Alguns
foram achados 300 km ao sul do conglomerado de Jack Hills. Geoquímicos
examinam outras antigas regiões da Terra, na esperança de descobrir os
primeiros cristais de zircão anteriores a 4,1 biliões de anos fora da
Austrália.
A intensificação das buscas está estimulando o aperfeiçoamento das
tecnologias. Cavosie obteve análises com mais exactidão e identificou mais
de 20 cristais de zircão do conglomerado de Jack Hills com alta proporção
de isótopos de oxigénio, o que indica temperaturas mais frias na superfície
e a presença de oceanos há 4,2 biliões de anos. Meus colegas e eu
continuamos as buscas, com o auxílio do primeiro modelo da mais nova
geração de microssonda iónica, a Cameca IMS-128, instalada no meu
laboratório em Março passado.
Muitas questões serão respondidas se pedaços das rochas originais
que formam os cristais de zircão puderem ser identificados. Mas, mesmo que
isso não ocorra, ainda temos muito o que aprender com essas minúsculas
cápsulas do tempo.

Cápsulas do Tempo
Por muito tempo, geólogos pensaram que as condições hostis presentes no
nascimento do nosso planeta, 4,5 biliões de anos atrás, deram lugar a um
clima mais ameno há cerca de 3,8 biliões de anos.

Hoje, pequenos cristais de zircão, que retêm evidências claras de quando e
como foram formados, sugerem que a Terra esfriou muito mais cedo, talvez há
4,4 biliões de anos.

Alguns cristais de zircão mais antigos apresentam composições químicas
herdadas de ambientes mais frios e húmidos, como os necessários para a
evolução da vida.


O autor
John W. Valley completou o doutorado em 1980 pela Universidade de Michigan
em Ann Arbor, onde começou a se interessar pela Terra em seu estado
primitivo. Ele e seus alunos passaram a explorar o registro das rochas mais
antigas por toda a América do Norte e Austrália, Groenlândia e Escócia.
Hoje, Valley é presidente da Sociedade Mineralógica da América e professor
de geologia da Universidade de Wisconsin-Madison, onde fundou o sofisticado
laboratório WiscSIMS.


Para conhecer mais
A cool early Earth. John W. Valley, William H. Peck, Elizabeth M. King e
Simon A. Wilde, em Geology, vol. 30, no 4, págs. 351-354, April de 2002.

Magmatic d18O in 4400-3900 Ma detrital zircons: a record of the alteration
and recycling of crust in the early Archean. Aaron. J. Cavosie, J. W.
Valley, S. A. Wilde e the Edinburgh Ion Microprobe Facility, em Earth and
Planetary Science Letters, vol. 235, no 3, págs. 663-681, 15 de julho de
2005.

O website do autor, "Zircons are forever" está no endereço
www.geology.wisc.edu/zircon/zircon-home.html


Edição Nº 42 – SCIAM Brasil – Novembro de 2005
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