terça-feira, 24 de março de 2009

Metabolismo

Roberto Takata

Introdução
O METABOLISMO1 é o conjunto das reacções físico-químicas2 que ocorrem em um organismo3. Nos organismos actuais tais conjuntos são bastante intrincados com milhares a milhões de reacções diferentes interconectadas. As reacções têm suas taxas alteradas por estímulos ambientais e também pela taxa de outras reacções: pela alteração de factores como concentração de reagentes, quantidades de catalisadores, activadores, competidores e inibidores de reação e também por elementos físicos como temperatura e distribuição espacial dos reagentes.
Por meio dessas reacções os organismos reagem ao ambiente e às alterações nas condições internas, mantendo um estado interno mais ou menos estável – a homeostase4, 5. Essa estabilidade, no entanto, não é absoluta. As condições internas do organismo não permanecem exactamente as mesmas ao longo do tempo – o ponto de equilíbrio, isto é, o estado em torno do qual as condições tendem a variar, geralmente muda com o desenvolvimento do organismo ou periodicamente: a temperatura corporal média de um animal em hibernação é diferente da do mesmo animal em estado activo ou a concentração hormonal em plantas adultas certamente é diferente da de plântulas imaturas. (O desenvolvimento orgânico, na verdade, pode ser pensando como a variação do ponto de equilíbrio ao longo do tempo, fazendo com que as características dos organismos mudem ao longo do tempo – seu tamanho, sua concentração interna de sais, seu comportamento e assim por diante.) Embora os processos de alterações físico-químicas nos organismos actuais tendam a ser complexos, mesmo em alguns sistemas simples (e inorgânicos) podemos perceber essa tendência ao equilíbrio (dinâmico) em respostas a alterações externas e internas – uma reação química simples, por exemplo, pode-se deslocar para um ou outro sentido de acordo com a concentração maior ou menor de reagentes ou produtos; ou ainda um sistema de tampão ácido-base pode contrabalançar (dentro de uma certa faixa de variação) a adição ou subtracção de protões à solução permitindo que o pH varie muito pouco.
As reacções que compõem o METABOLISMO podem ser divididas em dois grandes grupos interdependentes:
  • Catabolismo6 – é o conjunto de reacções que degradam as substâncias em componentes menores (ou melhor seria dizer menos energéticos). Geralmente são acompanhadas da liberação da energia contida nas ligações químicas rompidas. Essa energia pode ser perdida para o ambiente ou utilizada em outros processos biológicos – movimento, síntese de compostos, reprodução, crescimento e desenvolvimento.
  • Anabolismo6 – é o conjunto de reacções que produzem compostos e substâncias a partir de componentes menores (ou menos energéticos – muitas vezes as reacções não envolvem a união de dois componentes, mas a transformação de um componente em um componente mais energético, como no caso da alteração do estado de oxidação de iões). Frequentemente vale-se da energia liberada nas reacções catabólicas para produzir dos compostos necessários no crescimento e desenvolvimento do organismo – ou pode utilizar-se mais directamente de fontes externas de energia como no caso da fotossíntese.
Da relação entre os processos catabólicos e anabólicos depende o que ocorre com o organismo. Se os processos catabólicos predominam, o organismo pode se degenerar até sua total degradação – como ocorre no processo de senescência (envelhecimento) – se são os processos anabólicos que predominam, o organismo pode acumular reservas e recursos, crescendo em tamanho, organização e complexidade. Porém os processos anabólicos dependem fundamentalmente dos
catabólicos como fonte de energia (e componentes). No caso em que ambos os processos ocorrem em intensidades equivalentes, as condições internas tendem a permanecer mais ou menos iguais.
O catabolismo e o anabolismo são em grande medida processos opostos – o que é produzido por um processo o outro desfaz. Isso faz com que, grosso modo, sejam incompatíveis. Se ambos ocorrerem no mesmo lugar ao mesmo tempo teremos pouco mais do que o trabalho de Penélope ou de Sísifo. É indispensável uma separação desses processos – a separação temporal pode ser obtida por meio de controlos que inibem um dos processos enquanto o outro está correndo, a separação espacial pode ser alcançada por meio da compartimentalização.
O METABOLISMO, sendo fundamentalmente um processo de transferência e transformação de energia (vide nota 2), está sob acção dos princípios termodinâmicos. Uma importante implicação disso é que, dado que os processos biológicos dependem dos processos metabólicos, a Vida só pode ocorrer em sistemas ou subsistemas abertos – isto é, que troquem materiais e energia com o ambiente (ou pelo menos que não sejam isolados, que troquem energia com o meio externo). Isso porque se não há troca de energia com o meio, o metabolismo não pode continuar indefinidamente já que as transformações sempre geram uma quantidade de energia na forma que não pode ser utilizada no processo – a energia útil (a que pode realizar trabalho nas condições do sistema) é gradativamente consumida (isto é, transformada em uma forma que não é capaz de realizar trabalho) até que o processo de transformação não possa mais prosseguir. Os seres vivos devem então se interpor a um fluxo de energia – como a da luz solar rumo ao espaço sideral no caso dos organismos fotossintéticos ou que deles dependem (caso da maioria dos organismos conhecidos). Corte-se o fluxo de energia e, rapidamente, a Vida deixa de existir – como flores no escuro ou pessoas em inanição7. O corte do fluxo não precisa se dar necessariamente na entrada de energia, pode ocorrer também pelo bloqueio da saída de energia – impeça-se, por exemplo, a dispersão de energia térmica com camadas e camadas de material isolante e em um tempo bem curto atingiremos uma situação bastante crítica8.
Embora o METABOLISMO seja essencial para os processos biológicos, certos organismos em condições especiais podem suspender suas actividades metabólicas, retomando-as quando as condições lhes forem mais favoráveis – essa capacidade de retomada das actividades metabólicas e das demais actividades biológicas depende da preservação de sua estrutura interna9. Para a maioria dos casos, no entanto, a cessação das actividades metabólicas significa a morte. Um leve
asteísmo está presente neste facto: embora seja extremamente embaraçoso aos biólogos a incapacidade de se dar uma definição de Vida, podemos definir a morte de um organismo como a cessação irreversível de seus processos metabólicos.

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Notas
Nota1: do grego metabolê, ês (metá 'para além de' + bálló 'lançar, jogar') 'transformação; mudança de natureza, carácter ou costume'. Noção que surge em outros vocábulos como a-, hemi- e holometábolo, referindo-se à condição de certos organismos – notadamente insectos – de passarem ou não pelo processo de metamorfose (uma transformação em sua constituição física), ou metábole, figura de linguagem que consiste na repetição das mesmas ideias, apenas com palavras diferentes, ou a repetição das mesmas palavras com alteração na ordem.
Nota2: em uma definição mais ampla, o metabolismo pode ser entendido como o conjunto de transformações energéticas que ocorrem em um sistema físico e as alterações físicas que causam essas transformações, acompanham-nas ou delas decorrem – nesse sentido, poderemos falar até mesmo de metabolismo de geladeiras e estrelas. Uma definição ainda mais ampla seria o conjunto de operações realizadas sobre elementos de um sistema – aqui, sistemas abstractos como programas de computadores (mesmo desconsiderando-se a questão do hardware) ou mesmo uma equação matemática podem ser acusados de ter metabolismo.
Nota3: 'no organismo' - por vezes, tais reacções podem ocorrer também fora do organismo: algumas espécies iniciam sua digestão extracorporalmente, como as das aranhas – cujo veneno injectado na vítima digere seus tecidos, permitindo ao predador apenas sorver a massa liquefeita.
Nota4: Termo criado pelo fisiologista americano Walter Cannon (1871-1945), cunhado sobre o grego hómois, a, on 'semelhante, de mesma natureza' e stásis, eós 'estabilidade, fixidez'.
Nota5: Não deixa de ser irónico que por meio do metabolismo (essencialmente uma transformação, mudança nas condições) se obtenha a homeostase (essencialmente uma permanência das condições internas). Ainda que possamos ver uma ironia – certamente involuntária – nisso, não chega a ser um paradoxo. Lembremo-nos da passagem de "Alice do outro lado do espelho" de Lewis Carrol, em que a Rainha de Copas diz para Alice: "É preciso correr o mais rápido que você puder para ficar no mesmo lugar!" ou do ato de baldear a água para fora de uma canoa furada ou da expressão "enxugar gelo" – como o ambiente interno e o externo tendem a se alterar com o tempo (ver no texto principal a questão sobre as implicações termodinâmicas do metabolismo), as transformações metabólicas, em muitos casos, actuam no sentido de contrabalançar essas alterações.
Nota6: "Catabolismo" e "anabolismo" – dos gregos katá 'para baixo' e aná 'para cima'.
Nota7: A energia útil que mantém o processo varia de sistemas para sistema. Apesar das alegações em contrário, para humanos é inútil a simples presença de energia na forma luminosa – assim como para um carro à gasolina, energia eléctrica não serve; não estamos aparelhados para utilizar directamente essa fonte de energia. Para nosso organismo, a energia deve estar na forma de ligações químicas de compostos orgânicos como açúcares e gorduras.
Nota8: Tal bloqueio impede o funcionamento de outros sistemas além de organismos individuais. Vide o que acontece com uma cidade que sofre com uma greve prolongada dos colectores de lixo.
Nota9: "depende da preservação de sua estrutura interna" – Assim, o sonho da ressuscitação após o congelamento do corpo permanece bastante distante, a despeito das promessas de algumas empresas, pois o processo de congelamento de um volume tão grande quanto o humano não é rápido o bastante para se evitar a formação de cristais de gelo maiores – que rompem a integridade das células.

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